Quem acompanha este blog desde o começo sabe da minha admiração profunda e especial por Clarice Lispector.
Acho que é a maior autora de todos os tempos, com sua sensibilidade e sutileza típicas e, como todas as coisas verdadeiras, fortes. Os textos de Clarice ecoam por muitos dias em minha cabeça, em minha alma, e depois da leitura de seus contos fico ruminando cada palavra...
Calhou de "Felicidade Clandestina", um dos livros mais lindos de Clarice, ser uma das obras indicadas n meu vestibular e foi por esse livro que fomos reapresentadas, já que, depois de "A vida íntima de Laura", eu tinha me tornado um pouco arredia com a escritora que me proporcionou uma das maiores decepções da infância. Para quem não sabe - ou não leu o post - Laura (cuja vida íntima Clarice conta) é uma galinha. E não foi bom ter uma xará galinha aos 7 anos de idade, como vocês podem imaginar.
Clandestinamente, a Felicidade de Clarice entrou em minha vida, imposta pela necessidade de me preparar para as provas, e acabou se tornando um livro de pequenas lições de felicidade cotidiana. Entre tantos outros textos lindos, um me marcou de maneira peculiar: Perdoando Deus.
Não ousaria tentar reproduzir exatamente o que o conto conta, mas é sobre uma moça (como todas nós) andando por Copacabana e que se pega num exercício de ver as coisas, fazendo divagações lindas sobre o amor e Deus e a maravilha da vida, quando, de repente, pisa num rato morto.
O rato quebra a linha de raciocínio, faz o sentimento da narradora dar voltas e chegar a lindas conclusões sobre o amor.
Fato é que, no domingo, eu estava assim, andando por Copacabana com meus pensamento, pensando em como eu estava feliz e realizada, em como meus sonhos estavam todos parecendo se realizar ao mesmo tempo, agora.
Preparei um post lindo e enorme, no domingo a noite, para contar a vocês a maior novidade de toda a minha vida nos últimos tempos. Não é o livro, e começava assim:
"Eu não sei se foi a fitinha, as ondinhas que pulei, as sementes de romã. Não sei se foi a cartomante, a vidente, as cartas enviadas diretamente ao universo ou as orações e promessas tão devotamente feitas a São Judas Tadeu. Eu não sei o que foi. Sei que deu certo e, acreditem vocês ou não, a bonitona encalhada que vos escreve... VAI CASAR".
Eu continuava assim:
"E mais, vai casar dia 9 de julho, deste ano. Assim, de repente, não mais que de repente."
O texto ia por caminhos que eu nem me lembro e, não sei por quais motivos, decidi deixar a postagem para segunda de manhã. Queria que a semana de vocês começasse com essa novidade.
Na segunda bem cedinho, entrei na internet para publicar a postagem e, de repente, não mais que de repente, exatamente com a mesma frase que eu tinha usado para um post super feliz, vocês sabem o que aconteceu. Pisei no rato morto, o que me deixou em silêncio até hoje, medindo se deveria, e como deveria, contar a minha novidade. Porque, subitamente, fiquei com vergonha de ter estado tão feliz.
Alguns ratos em nosso caminho são necessários, para por as coisas em perspectiva e dimensão adequadas. Por mais que eu sonhe em me casar, este sonho não impede a felicidade cotidiana de ter muitas amigas (e amigos) queridos por perto. De ter amor em várias formas: amor de mãe, de pai, de irmã, amor de prima, de sogra...posso até ser encalhada (o que em breve vai mudar) mas isso, de fato, não é o essencial.
O essencial é estar viva, e ser feliz. O resto, todo o resto, incluindo o encalhamento que tanto nos aflige (ratinho que passa por nosso caminho), faz parte da felicidade. Porque toda a felicidade que conhecemos é clandestina. Está escondida nos cantinhos de nossas vidas, procurando frestas e porões de onde possa, eventualmente, escapar. A tristeza não. É titular. A gente acha normal estar triste, cabisbaixo, cansado, estressado, insatisfeito. Estranho é estar feliz, assim, leve, cantando na chuva, assobiando para os passarinhos, dando bom dia a estranhos que passam por nós na calçada.
Minha felicidade estava toda exibida no domingo. Livro, livro, livro, casamento, casamento, casamento, mais ou menos como o moinho, moinho, vaca, vaca, vaca. Deixei que a felicidade costumeiramente clandestina me inundasse, protagonizasse seu show.
Eu estava acreditando que todos os sonhos se tornariam realidade, sem nenhum susto ou atropelo. Estava certa de que, enfim, seria feliz para sempre, ininterruptamente, simples assim.
Mas não.
Serei feliz para sempre, hoje voltei a acreditar, mas não ininterruptamente feliz. Serei feliz para sempre, se tudo der certo, como fui feliz sempre, até hoje. Carregando, desde sempre e para sempre, a felicidade clandestina que, felizmente, mora dentro de mim.
Se o blog continua? Não sei. Acho que sim.
Porque a Bonitona Encalhada, agora felizmente, sou eu, acho que independentemente do meu estado civil. E essa frase de Clarice, como todas as coisas que ela escreve e que ficam incrustadas em meus pensamentos, já ficou sendo minha também.
Para terminar esse post, e pra quem merece muito mais que Laura Henriques, apresento, "Perdoando Deus" de Clarice Lispector:
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas.
Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto.
Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos. Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto.
E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva.
Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada.
Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais. Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação. ... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também.
Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda.
E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte.
Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará.
Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998