
Há um (bom) tempo, uma amiga da minha irmã foi fazer intercâmbio na Holanda.
O primeiro email que ela mandou foi mais ou menos assim:
"Ei, amiga!
Estou adorando a vida nova. Moro em uma fazendinha, e vou de bicicleta pra escola. É tão bonito o caminho: vejo moinhos, como os dos filmes, tulipas e vacas, na maior paz...
É uma paz e eu ainda faço uma ginástica...chego na aula com a cabeça já em funcionamento e com os pulmões cheio do ar fresco que respiro pelo caminho.
Acho que este tempo fora vai ser muito bom.
Bjos"

O entusiasmo com as novidades era tangível, dava pra sentir pelas palavras. Um cenário todo novo, tantas informações visuais...Passados uns meses, a vida também foi passando, e minha irmã recebe o segundo email:
"Ei, amiga!
Estou morrendo de saudades de você e da minha vida. Queria tanto acordar só 10 minutos antes de chegar na escola, curtir a cama até o último minuto. Não aguento mais pedalar quase 10 quilômetros (só de ida) e ver moinho, vaca, vaca, vaca, moinho, vaca, vaca, vaca. Está frio, chego na aula com os pulmões queimando. Nem as tulipas aguentam.
Bjo".
Sempre que me lembro desse caso eu acho a maior graça. O que no ínicio era beleza e novidade, virou tédio. Os lindos moinhos e a paz das vaquinhas viraram moinho, moinho, vaca, vaca, vaca, vaca.
Somos capazes de anestesiar todos os sentidos. Você não se esquece de ouvir, às vezes? Fica conversando com alguém ao telefone e, de repente, se dá conta de que não tem a mínima ideia de qual seja o tema da longa prosa? Você não deixa de se comover com um abraço. Fica insensível a um toque mais sutil, da sua mãe, da sua amiga, que passa a mão no seu cabelo? Você não engole a comida, e esquece de sentir o gosto? Não passa pelo seu namorado super cheiroso e esquece de sentir o cheiro? Anestesiada, a gente vive, os dias passam.
Para mim, a visão é o sentido mais anestesiado. A gente bate o olho em tantas coisas e simplesmente se esquece de ver, de enxergar. Homens então...hunf! Não percebem que cortamos uma franja super ousada, que fizemos milhares de luzes, que perdemos 10 quilos... Não, estou sendo injusta, os dez quilos eles sempre notam!
Voltando à anestesia, já aconteceu com você de estar passando na sua rua, no seu caminho de todos os dias, ver uma obra ficando pronta e pensar: gente, de onde surgiu isso? O que era aqui antes? Era uma casa? Um lote vazio?
Me sinto muito estranha com isso. Nos acostumamos e deixamos nossa visão ficar bêbada, para o bem e para o mal. Depois de tantos anos, morando na mesma casa, desistimos de olhar, não vemos mais, deixamos de usar. Assim não vemos o moço que dorme sob as marquises, e não vemos o arco-íris que está surgindo. Não vemos a celulite ficando cada dia mais aparente, não vemos o brilho do cabelo de nossa amiga, não vemos o sol lindo e radiante, não vemos o lixo que voltou do bueiro depois da última tempestade.
Quando me assusto com algo que deveria ter visto há tempos e que estava ignorando (como é o caso de alguma árvore linda pelo meu caminho de todos os dias), só me vem à cabeça o mantra: moinho, moinho, vaca, vaca, vaca...dou umas risadas comigo mesma.
Guardamos nossa visão para as novidades: sabemos descrever os detalhes mínimos daquele banco de areia no meio da praia de nossas férias, mas, como é mesmo o nome da lanchonete da esquina? (Mc Donalds não vale!) Pior que tudo é quando deixamos de ver as pessoas. Passamos por pessoas como se elas não existissem, como se fosse parte da paisagem. Nem cogitamos cumprimentar, afinal, ninguém cumprimenta uma árvore, certo?
Errado. Conheço gente que acorda e vão pra yoga, fazer inúmeras saudações ao ar, à àgua, à vida e passa sem mover um único músculo da face para dar um "bom dia" pra quem está na recepção da academia.
Da minha parte, venho tentando, todos os dias, abrir meus olhos para ver, de verdade, tudo o que está a meu redor, como se fosse a primeira vez.
