terça-feira, 2 de setembro de 2008

A bonitona encalhada em ação

Parece contraditório, mas eu, assim, enquanto bonitona encalhada, imersa na epidemia matrimonial que me cerca, acabei me tornando uma espécie de gurua casamenteira das minhas amigas. Mesmo sem nenhuma expectativa de me casar em breve, mesmo sem vislumbrar qualquer possibilidade de me tornar uma noiva, acabei ganhando a confiança de minhas amigas, e de amigas das minhas amigas, e de amigas das amigas das amigas, enfim, você já deve ter entendido. Passei a dar palpites gratuitos nos casamentos dos outros.


É engraçado, porque, sendo eu assumidamente encalhada, passei a inspirar essa confiança inusitada nas semi-desencalhadas (semi sim, porque, se casamento, que é de papel passado desanda, noivado também pode desandar) que me rodeavam. Gastei muitas horas imaginando a razão dessa consultoria espontânea e gratuita, e quase conclui que o fato se deveu à minha pouca expressividade em termos de inveja: eu, enquanto encalhada, não copiaria nada das minhas noivas-amigas, não roubaria as idéias delas para usar no meu “evento” e, por isso, acabei sendo a escolhida para acompanhar nas andanças que precedem um casório.

Degustei docinhos, salgadinhos, japonês, bem casados, pizzas, vinhos brancos, tintos, rosé, frisantes, espumantes, cachaças. Vi books de fotógrafas diversas, assisti a vários filmes de casamentos cujos nubentes eu nunca vira, só palpitando sobre a sensibilidade artística do profissional de filmagem, acompanhei em costureiras, lojas de lembrancinhas, de forminhas (forminhas de casamento merecem um capítulo a parte) e em espaços de eventos.

Resumindo, uma amiga encalhada é o equivalente a um amigo gay de uma mulher. Assim como gay deve ser ótimo pra dar palpite sobre homem, sem nenhum risco, porque não é concorrente, a encalhada entende tudo de casamento, porque ela só pensa no assunto, mas também não é, por assim dizer, concorrente. Como quem só pensa no assunto, acabei atraindo as coisas, mas os casamentos que atraí, por enquanto, foram só os dos outros. Para mim, nada em vista.

Outra idéia que me vem agora é a de que a amiga encalhada é meio parecida com a endocrinologista gorda, sabe? Ela entende tecnicamente do assunto, só não aplica seus conhecimentos na vida dela. Ela cura os gordinhos, mexendo nas glândulas deles, nos hormônios, na dieta, mas não se resolve. Pode ser até que ela seja muito mais resolvida que os outros, e por isso, se mantém. É uma hipótese.

A amiga encalhada é como o técnico de futebol: manja do assunto, mas não joga. Se bem que, atualmente, o que tem de técnico de futebol que não manja do assunto e também de técnicos que jogam... Meu exemplo futebolístico foi péssimo, justamente porque não entendo nada do assunto. Atualmente entendo de casamentos, chás de panela, chá bar, despedidas de solteiro, e um pouco da vida e de relacionamentos em geral.

A vida é mais interessante e engraçada que qualquer ficção, pelo menos na minha opinião. Sempre achei que meus sonhos são muito maiores que minha realidade. Sempre senti que minha cabeça funciona mais rápido que minhas mãos e que minha boca. Sempre processando muitas informações ao mesmo tempo, tendo idéias, descartando-as, tendo sonhos, descartando-os, e limitando minha vida ao mais trivial cotidiano, enfim, tendo uma vida, descartando-a. O problema: sempre tentei ser normal. E ser normal é muito difícil, porque de perto, ninguém é exatamente normal. Qual é a sua definição de normalidade? Quem é a pessoa normal que você conhece?

Queria aproveitar esse momento de fuga da realidade, para dizer que hoje, acho que a vida é feita de sonhos e que o resto é o que temos que fazer para realizá-los. Quero contar que uma boa conversa muda os rumos de algumas coisas e que não há caminho sem volta, não há estrada sem retorno, não há qualquer coisa definitiva. Quero contar que a medida da alma é a métrica da poesia. Que nem tudo que se pensa pode ser dito em palavras. Que não há palavras para o que se sente. Mais que isso: quero contar nenhuma imaginação dá conta das coisas que a vida inventa.
É isso. A vida é um turbilhão criativo e sempre que me acontece alguma coisa muito inusitada, o que acontece com certa freqüência, eu penso assim: olha a imaginação da vida superando as previsões...

Meu primeiro caso como a bonitona encalhada em ação aconteceu justamente no dia em que precisava descobrir como marcar o casamento de alguém na igreja.

Enquanto dirigia (muito mal, porque eu dirijo muito mal mesmo), tentava ligar para a amiga-noiva (vai imaginando, alguém que já dirige mal, tentando discar o celular).
Celular fora de área ou desligado. Não tinha vaga, nem sinal da amiga, nem da operadora de telefonia. Eu pensando: abro uma brecha na minha agenda, falo que tenho médico, saio mais cedo do serviço por causa da desnaturada e ela me deixa assim na mão. Mais uma volta no quarteirão e eu desisto, pensei. Dei mais uma volta. Mais uma. Mais uma. Enfim, uma vaga! Alívio.

Meio alívio, na verdade. Sou mineira e minha cidade é, assim, montanhosa, como, aliás, é o estado inteiro. Recomeça o drama...Vaga numa super descida. Carro 1.0, sem direção hidráulica e, obviamente, sem câmbio automático ou qualquer outra coisa que tornasse mais fácil dirigir.
Vamos lá, comecei a pensar comigo mesma, concentra na respiração, respiração, inspira, expira, inspira, expira, abra o olho, olhe a vaga, inspira, expira, suspira, praticamente uma ioga pré-manobra. Força nas pernas, controla a embreagem, puxa o freio de mão... Vamos lá, concentração, vaga pequena, carro idem. Vaga menor que o carro?
Ponho o carro do lado da vaga, não, vaga maior que o carro, com folga de quase um metro, aliás. Noções de espaço e de direção nunca foram meu forte mesmo.

Dou ré. Rezo baixinho. Concentro.
Rua de pa-ra-le-le-pí-pe-dos, com graminha entre os pa-ra-le-le-pí-pe-dos... Vamos lá, Laura, força e concentração. Puxa esse freio de mão, isso... Calma. Respira, respira de novo. Vira o volante. Vira tudo. Isso, isso. O pior já passou. Calma. Puxa o freio de mão. Desliga o carro.
Desci do carro e fui andando do melhor jeito possível, de salto no piso de paralelepípedos (ô palavrinha difícil!)...

Na minha opinião, devia ser proibido esse tipo de piso num lugar tão público como uma rua, quase na porta de uma igreja. Tanta lei inútil hoje em dia, mais uma, menos uma, não ia atrapalhar ninguém.



Eu, como usuária de salto alto, acho. Afinal, os idosos estão por aí, correndo o risco de tropeçar e, osteoporose em alta, quebrar tudo o que não pode mais ser remendado. Enfim... além disso, as noivas. Imagina a noiva chegando, maravilhosa, de salto agulha, entalada entre os paralelepípedos...

Ai, visualizei, ao longe um pequeno amontoado de mulheres. Aliás, não era um amontoado, era uma fila mesmo, indiana. Fui andando, meio sem graça, meio tensa, coração aos pulos... meu Deus, pensei, são 9 da manhã e já tem essa fila, que loucura é essa? Nem estou nesse desespero todo, aliás, meu desespero é outro e... todo mundo aqui já deve ter noivo. O mais importante é ter o noivo.

Vale uma observação: isso era 2 de janeiro. Dois de janeiro e já tinha fila na porta da igreja pra conseguir data...

Pois então, a amiga-noiva me encaminhou pra missão impossível que era conseguir uma data no sábado. Ela tinha decidido data com o noivo no reveillon e de lá me ligou pra pedir o favor de ir à igreja reservar a data. Data decidida na virada do ano, no dia seguinte o noivo já amanheceu péssimo.

Ressaca, pensaram.

Ele começou a passar a mal ainda na festa, passou mal a noite toda, e de manhã descobriram que a ressaca era, na verdade, uma crise de apendicite que o levou ao hospital. Tão sincronizado, cada um começou o ano extirpando algo que está incomodando, ele, o apêndice, a amiga, o “status” de encalhada...

Voltando ao caso, a igreja era linda de morrer. Fica em uma praça que ocupa todo um quarteirão, cheia de árvores. Majestosa, comporta uns 500 convidados sentados, pé direito altíssimo, um vitral maravilhoso ao fundo, uma sacada onde ficará o coral e o moço do violino. Em estilo barroco rebuscado, bem sóbria e bem imponente. A iluminação é linda, postes e banquinhos que dão um ar de cidade de antigamente, um charme. O carro pode parar bem na porta, sem atrapalhar o trânsito. A igreja é como uma ilha de passado e calma em meio ao caos urbano. De babar mesmo.

Agora, segue a dica da experiência: agenda de igreja concorrida e bonita, em qualquer cidade, só abre com um ano de antecedência, tecnicamente, quase dois, porque se estamos em janeiro e podemos marcar para dezembro do próximo ano, são quase 23 meses de antecipação. A questão é que só se pode marcar casamento, no máximo, para o ano seguinte. E se minha amiga queria casar em setembro, do ano que vem, tem que marcar em janeiro deste ano.

Chegando à fila, tentei fazer cara de normal. Olhava uma por uma e pensava “e a bonitona aqui encalhada”...

Fiz cara de muita tranqüilidade, tentei parecer normal, relaxei a testa, mas percebo que a concorrência está toda tensa pra ver se “a” data ainda está livre. Todas se olhando, reciprocamente, pensando: “que dia será que essa baranga vai querer”... Tudo bem que a agenda ainda nem tinha sido aberta. Eu queria qualquer dia de setembro, sábado, às 20 horas. Pode ser às 19 horas também, sábado é um dia ótimo pra casar, dá tempo de todo mundo ir pro salão, fazer tudo, e ficar na festa até tarde. Descansados. Sexta não, sexta é mais arriscado de ter estresse. Se bem que, em certos casos de encalhamento crônico, até segunda-feira é dia bom.
Pra relaxar e pra dar sorte pra minha primeiríssima amiga-cliente comecei um mantra mental: sábado, sábado, sábado... Mantra e respiração ayurvédica... ayurvérdica?... ayruvédica?... ayuvérdica? ... Então, resumindo, respiração zen, pra não estressar com o nome da respiração. Respira. Respira.

Fiquei lá respirando e, de repente, me deu vontade de conversar com a moça da frente.

Isso é outra coisa relevante de se saber sobre mim. Puxo papo até com aqueles bonecos de papelão que ficam em locadora. Preciso dizer também que sou míope e quase nunca uso óculos, pra não comprometer o visual. Mas que aqueles bonecos de papelão confundem a gente, principalmente se você está distraído, isso confundem. Olhando de longe, então, parece gente. Que nem aquele filme do Will Smith.

Retomando o fio da meada, mais uma vez, estava eu lá respirando e me segurando pra não puxar papo com a moça da fila.

Pensei em me concentrar e me conter.

Pensei também: você não conhece a moça da frente, puxar papo não é uma boa idéia. Não converse com estranhos é um preceito básico fundamental da segurança e da boa educação. Não cutuca a moça da frente, pode parecer que você não tem classe. Pensa: rival. Vai que é dessas invejosas que, só porque está na sua frente vai querer roubar o dia e hora. Respira fundo. Respira fundo, isso. Mexe na bolsa.

Mexer na bolsa é uma ótima estratégia quando uma mulher está sem o que fazer, porque bolsa de mulher é sempre uma bolsa de mulher, cheia de coisas perdidas em cantinhos. Achei o chaveiro que tinha perdido. Ótimo. Um brinco que eu nem lembrava que tinha. Minha agenda, meu celular, meu palmtop, meu carregador de celular, minha lixa, absorvente dia – se ficar menstruada de dia, absorvente noite – se precisar trocar a noite, ob – se o caso for de piscina, rímel, lápis, colírio, blush, corretivo, batom, gloss, canetinha, bloquinho de anotações, bombom – para os dias de menstruação, barrinha de cereais – para os dias de dieta, bolsinha de remedinhos – para os dias de estresse, cólica, dor de cabeça, ressaca, enjôo, inchaço, intestino e preso, carteira, carteira de motorista, documentos do carro.

Ai, a moça desconhecida com quem eu não queria puxar papo começou a olhar descaradamente para minha bolsa. Movimentos lentos. Tive vontade de falar expressamente: “Ou, psiu, com licença, querida. Quer tirar o olho da minha bolsa?”

Movimentos lentos, despistei, fingi que não estava notando. Olhei pra frente. Olhei para os lados. Pus os óculos escuros para observar melhor a adversária. Espreguicei. Alongamento de pescoço, girando, como na ginástica. Para o outro lado, girando. Parei pra não ficar tonta e baixar a guarda. Vamos ver se a fofa desconfia. Vamos lá, estratégia. Resiste. Respira. Não puxa papo. Fecha a bolsa logo. Fechei a bolsa.

Foi quando não resisti e falei: A fila tá parada, né?

E ela, naturalmente superior, respondeu: É porque ainda não abriu... - ninguém merece esse olhar superior de “quem é a desinformada que nem sabe o horário de funcionamento”...

- Como assim? – deixei escapar mais este comentário que revelava minha absoluta ignorância.
- Só abre ao meio-dia! – mais uma vez, o olhar “presta atenção na vida, minha filha!”.
- Sério? – melhor assumir a ignorância logo.
- Sério. – resposta entendiada. Tive praticamente que deduzir que foi isso que ela falou. Mal-humorada. Como será que seu noivo te agüenta, hein, hein?

Novo problema: ainda nem estava aberta a igreja e eu não contava com isso. E agora? Não podia ficar lá até... sei lá até quando...Decidi importunar a chata de novo:

- E que horas que fecha? – pergunto, com ares de argüição, testando os conhecimentos da exibida.
- Cinco e meia.
- Sério?
- Sério.


Outra constatação. Preciso parar de perguntar se é sério quando alguém está me respondendo alguma coisa. Tenho essa mania e qualquer dia desses alguém vai me dar uma resposta atrevida: não, não é sério, falei só pra te irritar (meu pai é craque nessas respostas).



Voltando ao caso, que já está se estendendo mais do que devia, pensei, já são 11 horas. O noivo de X deve estar saindo da sala de cirurgia. Vou tentar a amiga de novo. Fora de área. Que droga. Todo mundo que eu conheço ainda está viajando. Será que pode contratar alguém pra ficar aqui na fila por mim? Não precisa disso, eu acho. Amiga... chamava... chamava... não atendia. Normal. Nunca atende.

Quer saber? Fui embora. Onze e meia, mas eu fui embora. Só faltava meia hora, mas não posso deixar o escritório sozinho... Novamente, vou apelar para a chata:

- Aqui, licença. Você sabe se só a noiva pode marcar?
- A noiva, o noivo ou qualquer dos pais dos nubentes, mediante o pagamento da taxa de 150 reais, no horário de meio dia às cinco e meia da tarde. Ambos os noivos tem que ser católicos apostólicos romanos, batizados, crismados e, de preferência, paroquianos.

Anotei isso...

- E você é mãe de noiva? – apelei. Que mulher mais ressentida, não é possível que homem algum agüente isso.
- Sou melhor amiga de noiva. – respondeu.

Encalhada, pensei. Melhor amiga encalhada... Não vou mais render assunto. Melhor parar de conversar, antes que o encalhe vire revolta e volte-se contra mim. Não resisti.

- E você tá marcando o lugar?
- Não, gosto de ficar parada na porta da igreja mesmo. Exercitar a paciência e pagar meus pecados. – a ressentida engrossou.
- Então, tá. Acho que vou voltar amanhã.

Gente metida, essas melhores amigas encalhadas...

Fui andando calmamente nos paralelepípedos. Verificando cada um deles e calculando a distância exata para que meu salto não ficasse preso, nem me desequilibrasse.

De repente, mais ou menos no meio da distância entre a igreja e meu carro, sem maiores explicações, o céu se abriu e a chuva desabou. Chuva típica de verão. Tempestade.

Sabe aquela chuva de vento, que ninguém sabe de onde vem? Uma chuva literalmente horizontal, que não tem sombrinha que amenize? Então. Dessa espécie.
Então, vislumbre o cenário. Minha blusa era branca. Bolsa agarrada na frente, tentando evitar a nudez inevitável. Blusa colada, sutiã completamente revelado e a bolsa caríssima de camurça molhada que nem um cachorro de rua. Tudo isso, pra piorar, bem em frente à igreja. Depois dessa achei que não casava nunca mais. Deus não vai aceitar que eu entre de branco na casa Dele. Pior. Pode mandar um temporão desse no dia.

A linda praça da igreja virou um enorme quarteirão a ser percorrido. As árvores não protegiam nada, pelo contrário, só engrossavam os pingos que, a essa altura, já estavam bem volumosos, tentei correr com meus saltos nos paralelepípedos.

Pequena observação, dentre tantas outras que já fiz aqui: mulher correndo de salto é um espetáculo de terror. Aquela ligeira flexão de joelhos, seguido de um afastamento das pernas, é o ápice da deselegância. Glorinha Kalil reviraria no caixão, se estivesse morta...
E daí? Se Deus já estava me vendo pelada, não ia achar ruim de me ver deselegante. Se bem que Deus, em sua onipresença, deve me ver pelada sempre. De qualquer forma, é melhor que me veja esforçada, tentando sair da frente de Sua santa casa. Decidi correr.

Como corrida de salto molhado no paralelepípedo não podia dar certo, tropecei. A queda deve ter sido linda.


Eu, pessoalmente, queria ter visto de outro ângulo, diferente do que eu estava, vendo os paralelepípedos se aproximarem. Deve ter sido uma espécie de corridinha do começo de Baywatch, só que com a Betty, a feia, no lugar da Pâmela Anderson.
Senti que caia em câmera lenta, música de fundo e tudo mais, tentei segurar a bolsa. Quando os paralelepípedos se aproximaram demais do meu rosto, tentei me proteger, a alça da bolsa veio descendo, como se meu braço fosse um corrimão. Bolsa ao chão, joelhos ao chão, mãos ao chão. Chão, chão, chão, chão, chão, chão. Não tem um funk assim?

E foi o que se viu: eu, semi-nua, posição de malhar glúteos, em frente à casa do Senhor. Só é sexy escrevendo e imaginando, porque, de fato, não havia nenhum mínimo resquício de sensualidade. Joelhos ralados, queixo ralado, tudo meio sujo daquele pó de asfalto molhado, sujeira horrível...

Olhei em volta. A ressentida encalhada da fila me olhava com uma dose de ironia. Cogitei simular um desmaio, mas descartei quando entendi que meu cabelo ia ter que encostar no paralelepípedo e lembrei que já estava mais do que atrasada para o trabalho. Levantei-me, catando meus restos de dignidade pelo chão e, da melhor forma possível, andei rumo ao carro. Decidi que era melhor ir sem os sapatos mesmo.

Enfim, o carro.
Na rua íngreme, no chão de paralelepípedos, com graminha e aquela chuva. Enfim, o carro. Abro a bolsa: onde estão as chaves? Reviro a bolsa. Porque fui mexer na bolsa, as chaves foram parar lá no fundo.

A chuva já nem incomodava mais. Estava pelada, molhada e bem resolvida. Bom exemplo pra notar o que uma simples chuva pode fazer por você. Mulheres, sempre parem o carro longe e sempre saiam sem ter guarda-chuvas! Quem sabe não cai uma chuva dessas, existencial, que te liberte dos pudores? Uma chuva pra lavar a alma, pra refrescar os pensamentos e pra revelar ao mundo seu cabelo como ele realmente é. Devia estar delirando, ou ficando gripada, com certeza.

Concentro-me e acho as chaves, ali, fácil, entre os brincos, a agenda, o celular, palmtop, carregador de celular, lixa, absorvente dia, absorvente noite, ob, rímel, lápis, colírio, blush, corretivo, batom, gloss, canetinha, bloquinho de anotações, bombom, barrinha de cereais, bolsinha de remedinhos, carteira, carteira de motorista e os documentos do carro.

Ufa! Entrei no carro, com calma e delicadeza. Respirei, mas àquela altura, esse exercício de respiração já estava me irritando. Olhei para frente e constatei que alguém havia colado a traseira no meu pára-choque, bem na ladeira de paralelepípedos. Olhei para trás e constatei que alguém havia colado o pára-choque na minha traseira também. Respiro de novo, melhor respirar. Vamos lá.

Já disse que sou má motorista, mas não fui muito sincera. Sou péssima. Existem chances de eu seu a pior motorista de todos os tempos. Ainda não sei como consegui tirar minha carteira (e juro que não tentei seduzir o examinador).

Pus no ponto morto. Virei a chave. Ótimo, ligou. Pé no freio, solto o freio de mão. Péssima idéia, o carro está descendo. Puxo o freio de mão, pé no freio, engato a primeira. Desviro a chave. O freio de mão segura o carro, o freio de pé, não.

Calma. Muita calma nessa hora. Pus no ponto morto, virei a chave, soltei o freio de mão, pisei no freio, desceu mesmo assim, esse freio não vale nada. Freio de mão puxado até o limite. Meu carro a um fio de cabelo de distância do carro popular da frente. Respiro. Respiro. Olho pro carro de trás. Um carrão importado. É mais fácil (e vai ser mais barato) bater no carro da frente. Porém, bater no carro de trás pode ser mais vantajoso, afinal, ele que vai ter batido na minha traseira. Nada disso. Não vou bater em nenhum.

Virei a chave, tentei engatar a ré ainda com o pé no freio. Não dá. Tiro o pé do freio, pronto, o carro desceu mais um pouco. Está muito perto de bater.
Pensei: tenho que acelerar, engatar a ré e manter o carro parado ao mesmo tempo. E como é que uma loira ao volante vai fazer isso?

Eu precisava de três pés. Queria pisar no freio, para o carro não descer, na embreagem, para conseguir engatar a ré, e no acelerador, para o carro andar para trás no morro. Tudo ao mesmo tempo.

Sem solução aparente para o meu problema, virei a chave na ignição, pus um pé no freio e o outro encostado na embreagem. Na falta de pés, usei a mão direita para me segurar no freio de mão, enquanto a esquerda tentava alcançar o acelerador, para soltar o freio de mão e conseguir apertar os três pedais do carro ao mesmo tempo.
Preciso confessar uma coisa, agora, eu disse que aumentava as coisas que escrevia, mas garanto que o parágrafo acima é 100% verdadeiro. Eu fiz isso mesmo, do jeitinho que estou contando.
Obviamente, não deu certo. Eu, que fui reprovada no primeiro psicotécnico que fiz na vida, não tinha coordenação motora para tantos pedais e comandos ao mesmo tempo. O carro desceu e bateu no popular da frente.

A única coisa que consegui pensar foi: que bom que na minha frente não estava o carro importado. Pelo menos, agora meu carro estava devidamente encostado em outro, sem chances de descer mais.

Desci, tranquilamente o freio de mão. Mini-crise de pânico: e se o carro da frente tiver o freio de mão tão bom quanto o meu. Imagina, o carro lá embaixo, descontrolado pela avenida, numa ribanceira dessas? Precisava andar logo..

Por sorte, o carro da frente segurou o meu, e consegui sair da vaga.
Já estava atrasada, não conseguia marcar o casamento da amiga x nem falar com ela pelo celular. Tratei de ir pro trabalho, o almoço ia ficar na vontade mesmo. A chuva, do mesmo jeito que tinha começado, tinha parado.

Descendo a rua, ainda consegui ver, pelo retrovisor, a cara de brava da chata ressentida encalhada da fila quando se deparou com seu carro popular, batido.

É, o cartão de crédito estava certo: tem coisas que o dinheiro não compra.

2 comentários:

Barbara Chagas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Barbara Chagas disse...

Rolando no chão de rir.
E me recuso a acreditar que vc tentou acelerar com a mão!!
Nem loira né, bonitona!