Quando eu era pequena, um dos meus maiores medos era ter doença de Chagas.
Na casa de praia de minha avó, havia sempre uns barbeiros, verdes e fedorentos, e eu ficava preocupada de que me deixassem aquela doença misteriosa que, meu pai havia me explicado, deixava o coração gigante. Havia, na casa de praia, também lagartixas e besouros, formigas, abelhas e lagartas, mas nenhum criatura era tão temível, para mim, quanto o barbeiro. Às vezes, eu acordava de noite, com medo de ter sido picada. Afinal, era só coçar o local que a doença poderia instalar-se.
Outras vezes, durante o dia, sentia meu coração crescendo. Às vezes, quando corria, sentia o coração gigante, aos pulos. Pior que isso era senti-lo batendo em outros lugares, latejando no olho, no rosto, na barriga depois do almoço. Isso, para mim, não era uma sensação, era a certeza de estar doente, e acho que certeza infantil é a maior de todas as certezas.
Então, nesses dias, eu ficava quieta, e deitava na rede para ler e esperar meu coração diminuir. Não pulava corda, não brincava de nada, esperava, pacientemente, sentir que o coração estava menor. Ficava pensando no nome daquela doença, porque, como fazem as crianças, perguntei a meu avô o que era chagas (sem explicar que a dúvida se referia à doença) e ele disse que chagas eram cortes que sangravam. Claro que a explicação me satisfez e aumentou meu medo, pois demorei a saber que Chagas era de Carlos Chagas, o descobridor da moléstia (aliás, mini-reflexão, que coisa estranha a pessoa virar nome de doença, né?).
Agora, passados alguns anos, não tenho mais sentido o coração crescer, mas ainda há dias em que eu acordo e simplesmente sinto meu coração diminuiu. Porém, já tendo afastado a hipótese das chagas, acho que ele está diminuindo mesmo. Meu coração é um coração em pedaços, um coração em chagas.
Descubro, invariavelmente, em dias como esse, que as chagas foram todas feitas por mim e que meu coração ficou pelo caminho.
Descubro que fui entregando meu coração a muitos, aos poucos. Que, a cada dia, tem gente que ganha mais um pedaço, e gente que deixa o pedaço que ganhou em qualquer lugar. Que já não sei quem são exatamente essas pessoas, e que não adianta me preocupar com isso.
De qualquer maneira, quando encontro alguém que anda por aí com um pedaço do meu coração, sei de imediato. Sei pelo olho, sei pelo tom de voz, sei pelo sorriso, pelo esboço de cumprimento. Procuro essas pessoas, que me salvam de embaraços, que fazem com que lugares constrangedores e hostis sejam mais amenos, que ouvem meus desabafos, que me surpreendem com os seus.
Sei as pessoas que têm meu coração. Talvez porque também elas tenham me deixado um pedaço do coração. Talvez porque estejam cuidando diariamente do que receberam e, quando reencontro outra parte – da qual nem eu mesma me lembrava, faz com que sinta meu coração maior. Talvez porque elas mereceram um pedaço do meu coração, e vão continuar merecendo. Talvez porque elas nunca tenham pedido, talvez porque nem saibam que ganharam, talvez porque simplesmente são quem são.
Felizmente, há pessoas a quem eu entregaria meu coração inteiro, se pudesse. E outras a quem eu pediria licença para retomá-lo, dizendo, laconicamente, “acho que eu cuido melhor dele que você”...
De qualquer modo, é estranho sentir que você deixou seu coração pelo caminho. E mais estranho ainda é se conhecer a ponto de saber que, sendo eu quem sou, continuarei deixando-o pelo caminho, inevitavelmente, todos os dias, até que o coração se acabe.
Na casa de praia de minha avó, havia sempre uns barbeiros, verdes e fedorentos, e eu ficava preocupada de que me deixassem aquela doença misteriosa que, meu pai havia me explicado, deixava o coração gigante. Havia, na casa de praia, também lagartixas e besouros, formigas, abelhas e lagartas, mas nenhum criatura era tão temível, para mim, quanto o barbeiro. Às vezes, eu acordava de noite, com medo de ter sido picada. Afinal, era só coçar o local que a doença poderia instalar-se.
Outras vezes, durante o dia, sentia meu coração crescendo. Às vezes, quando corria, sentia o coração gigante, aos pulos. Pior que isso era senti-lo batendo em outros lugares, latejando no olho, no rosto, na barriga depois do almoço. Isso, para mim, não era uma sensação, era a certeza de estar doente, e acho que certeza infantil é a maior de todas as certezas.
Então, nesses dias, eu ficava quieta, e deitava na rede para ler e esperar meu coração diminuir. Não pulava corda, não brincava de nada, esperava, pacientemente, sentir que o coração estava menor. Ficava pensando no nome daquela doença, porque, como fazem as crianças, perguntei a meu avô o que era chagas (sem explicar que a dúvida se referia à doença) e ele disse que chagas eram cortes que sangravam. Claro que a explicação me satisfez e aumentou meu medo, pois demorei a saber que Chagas era de Carlos Chagas, o descobridor da moléstia (aliás, mini-reflexão, que coisa estranha a pessoa virar nome de doença, né?).
Agora, passados alguns anos, não tenho mais sentido o coração crescer, mas ainda há dias em que eu acordo e simplesmente sinto meu coração diminuiu. Porém, já tendo afastado a hipótese das chagas, acho que ele está diminuindo mesmo. Meu coração é um coração em pedaços, um coração em chagas.
Descubro, invariavelmente, em dias como esse, que as chagas foram todas feitas por mim e que meu coração ficou pelo caminho.
Descubro que fui entregando meu coração a muitos, aos poucos. Que, a cada dia, tem gente que ganha mais um pedaço, e gente que deixa o pedaço que ganhou em qualquer lugar. Que já não sei quem são exatamente essas pessoas, e que não adianta me preocupar com isso.
De qualquer maneira, quando encontro alguém que anda por aí com um pedaço do meu coração, sei de imediato. Sei pelo olho, sei pelo tom de voz, sei pelo sorriso, pelo esboço de cumprimento. Procuro essas pessoas, que me salvam de embaraços, que fazem com que lugares constrangedores e hostis sejam mais amenos, que ouvem meus desabafos, que me surpreendem com os seus.
Sei as pessoas que têm meu coração. Talvez porque também elas tenham me deixado um pedaço do coração. Talvez porque estejam cuidando diariamente do que receberam e, quando reencontro outra parte – da qual nem eu mesma me lembrava, faz com que sinta meu coração maior. Talvez porque elas mereceram um pedaço do meu coração, e vão continuar merecendo. Talvez porque elas nunca tenham pedido, talvez porque nem saibam que ganharam, talvez porque simplesmente são quem são.
Felizmente, há pessoas a quem eu entregaria meu coração inteiro, se pudesse. E outras a quem eu pediria licença para retomá-lo, dizendo, laconicamente, “acho que eu cuido melhor dele que você”...
De qualquer modo, é estranho sentir que você deixou seu coração pelo caminho. E mais estranho ainda é se conhecer a ponto de saber que, sendo eu quem sou, continuarei deixando-o pelo caminho, inevitavelmente, todos os dias, até que o coração se acabe.
6 comentários:
Linda!
Excelente o seu blog, principalmente esse texto. Me identifiquei muito com o trecho que fala das partes do nosso coração que deixamos por aí e, principalmente, com o trecho em que nos dá vontade de pedi-lo de volta, pois cuidaremos melhor.
Parabéns!
Um beijo!!
Adorei o blog e passo sempre por aqui..
o texto de hoje está maravilhoso.
beijão!
Quando eu era criança, perguntei para os meus pais porque meu coração batia mais forte quando eu chegava perto de uma coleguinha.
Tua escrita tem ritmo, sentido, tese, densidade, expressão e, além de tudo, faz qualquer um se identificar nela. Vejo imagens da minha vida nela. É aforística mesmo quando não quer. Certeza infantil é a maior de todas as certeza? Hoje eu lembrei que sim.
vc escreve lindamente! parabéns,
bjs
Maravilhoso esse texto, Laura!
Quanta sensibilidade vc fazer essas analogias sobre o coração...
Verdade pura!
Beijos da sua nova fã! ;)
Ju.
Postar um comentário